O Monsenhor
RENATO DE ANDRADE GALVÃO integra o elenco dos líderes
que na última metade do século XX muito contribuíram
para o desenvolvimento de Feira de Santana. Destacou-se
como sacerdote católico, colaborador do movimento
ecumênico, educador, pesquisador da história
de Feira de Santana e de sua região, bem como por
sua extrema sensibilidade política e comprometimento
com as causas educacionais e sociais, sempre em favor dos
excluídos.
Nasceu
em Brejões, na Bahia, em 11 de maio de 1918, e faleceu,
vítima de um infarto fulminante, em 9 de abril de
1995. Formado em Teologia, licenciado em Filosofia e ordenado
Padre em 25 de outubro de 1942. O seu sacerdócio
se estendeu sobre várias cidades do interior baiano,
sendo sua penúltima residência a cidade de
Cícero Dantas, onde se elegeu Prefeito para o período
de 1962 a 1965. Mandato que não concluiu, renunciando-o
para dedicar-se ao ministério sacerdotal no município
de Feira de Santana. Chega em Feira no ano de 1965. E logo
assume a posição de pároco da cidade
e Cura da Catedral de Santana. Dois anos depois, 1967, é
promovido a Monsenhor.
Quando
o Padre Renato Galvão transferiu-se para Feira de
Santana eu também estava lá. Havia chegado
em janeiro de 1965. Ele para ser Padre Católico e
eu para pastorear a Igreja Presbiteriana. Nenhum de nós
poderia prever que nossas vidas viessem a se encontrar na
realização de projetos comuns em favor do
Reino de Deus e do desenvolvimento da "Princesa do
Sertão".
Nosso
primeiro encontro aconteceu ainda em 1965, no Templo Maçônico
da Loja Luz e Fraternidade, na celebração
conjunta de um casamento. O primeiro casamento ecumênico
realizado numa Loja Maçônica. Ele convidado
dos pais do noivo e eu pelos pais da noiva. Conhecemo-nos
e planejamos ali mesmo a liturgia. Ele leu o Evangelho,
fez a cerimônia de troca das alianças, eu fiz
a oração e comuniquei a mensagem aos noivos
e familiares. Uma solenidade simples, porém encantadora,
inusitada, pioneira, ousada, que causou forte impacto na
comunidade maçônica, em nossas Igrejas e na
sociedade em geral. A partir dali nossas relações
se fortaleceram e nos tornamos grandes irmãos, amigos,
parceiros.
Encontrei
no Monsenhor Renato Galvão um sacerdote educador,
amante da boa leitura, pesquisador da história, um
líder bastante informado e comprometido com a formação
de cidadãos e o fortalecimento da democracia, de
aguda sensibilidade política, moderado, porém
sempre aberto a novas iniciativas, mormente quando se tratava
da fé cristã, dos interesses da cidade e da
defesa das causas sociais e da educação.
Convivemos
profissional e fraternalmente na Universidade Estadual de
Feira de Santana, UEFS Ele, professor de Estudos de Problemas
Brasileiros e Vice-Reitor nos dois mandatos de José
Maria Nunes Marques, e eu Professor de Ciência Política
e Pró-Reitor Acadêmico (reunindo as áreas
de ensino, pesquisa e extensão), participando, ao
longo do período, do Conselho Superior de Administração,
do Conselho Universitário e do Conselho Superior
de Ensino, Pesquisa e Extensão, CONSEPE. Lembro-me
bem do entusiasmo com que empreendeu a campanha de doação
de livros para formação da Biblioteca da Universidade
com vistas ao seu credenciamento pelo Ministério
da Educação, resultando na constituição
do primeiro acervo da Biblioteca.
Foi
um perspicaz estudioso das origens de Feira de Santana e
responsável pela redescoberta da importância
da data de 18 de setembro de 1833, como marco histórico
maior da cidade, quando se deu a instalação
da primeira Câmara de Vereadores, por Decreto Imperial.
Produziu e publicou vários textos, artigos e monografias
sobre temas históricos, religiosos e antropológicos,
entre os quais merece citação "O Clero
Baiano no Século XIX e os Povoadores da Região
de Feira Santana, este publicado na Revista Sitientibus,
Ano I, n 1, julho/dezembro 1982.
Merece
destaque o seu gesto de amor à UEFS, de compromisso
com a história, com a educação e a
ciência quando deixa em testamento toda a sua Biblioteca
pessoal para o Centro de Estudos Feirense por ele criado,
transformado em Memorial Monsenhor Renato de Andrade Galvão
em 1995, passando a denominar-se, em 2001, por Resolução
do Conselho Universitário da UEFS, de Biblioteca
Setorial Monsenhor Renato de Andrade Galvão. Um acervo
que reúne 4.916 exemplares de livros especializados
em história de Feira de Santana e região,
cultura popular e literatura de cordel. Constituiu-se ainda
de amplo documentário formado de periódicos
e documentos construídos ao longo de sua dedicação
à pesquisa regional, incluindo Jornais de Feira dos
séculos XIX e XX, manuscritos, cartas de alforria,
livros regionais, monografias e dissertações,
coleções de Revistas do Instituto Histórico
e Geográfico da Bahia, Cruzeiro, Manchete, entre
outros. Esta Biblioteca, competentemente administrada pela
UEFS, assume o papel de centro de referência para
estudantes e pesquisadores que buscam conhecer a cultura
e história de Feira e dos municípios que integram
o semi-árido baiano.
O padre
Renato chegou a Feira com 47 anos de idade, eu um pouco
mais moço com 29 anos. Ele trazendo na bagagem uma
vasta experiência vivenciada no sacerdócio
e na vida pública, com atuação em outras
paróquias, tendo inclusive exercido cargos importantes
como o de promotor de justiça eclesiástica
na Diocese de Senhor do Bonfim e de Inspetor Federal de
Ensino, eu apenas tentando ensaiar os primeiros passos na
vida profissional, certamente por isso mais afoito e ousado
no desempenho da missão. Não obstante nossas
diferenças, entendemo-nos como verdadeiros irmãos.
Visitávamo-nos assiduamente, permutávamos
livros, refletíamos juntos sobre temas teológicos
e sobre a missão da Igreja Cristã na região
de Feira, partilhávamos preocupações
com o futuro da cidade, celebrávamos atos ecumênicos,
permutávamos púlpito e realizamos juntos,
em dimensão ecumênica, a obra de erradicação
da mendicância e de capacitação profissional
de migrantes em Feira de Santana.
No melhor
espírito ecumênico, participou na Igreja Presbiteriana,
como co-celebrante, ao lado do Rev. Jaime Wright, do casamento
de minha primeira filha, Cilene Mello Sturken, e batizou,
na Catedral Diocesana, a netinha Camilla Mello e Lima. Nossa
amizade foi sempre acolhida pela comunidade feirense como
uma referência, um testemunho do Evangelho do Cristo
que veio ao mundo para destruir as barreiras de separação
e criar as condições para a unidade de todos
em Seu Nome. Entende-se que a oração de Jesus
Cristo permanece: "Que todos sejam Um para que o mundo
creia" ( João 17. 21).
Ele
e eu chegamos em Feira de Santana no meio da década
de 60 e a elegemos como nossa cidade e o seu povo como nosso
povo. A população do Município era
de 141.757 habitantes, sendo que 69.884 (49,29%) residiam
na área urbana e 71.873( 51,71%) na área rural.
A cidade estava em expansão. O Município aspira
ao desenvolvimento integrado. Eram imensas as perspectivas
de desenvolvimento. Lança-se na elaboração
de seu primeiro Plano Integrado de Desenvolvimento, cria
o Centro Industrial e, alguns anos depois, implanta a primeira
Universidade Pública do Estado da Bahia. Estavam,
assim, lançadas as bases principais para o desenvolvimento.
Todavia,
eram graves e alarmantes os problemas sociais, que se não
bem conduzidos bloqueariam o desenvolvimento almejado. Pois,
se por um lado, a localização da cidade como
maior eixo rodoviário do Nordeste favorecia a sua
expansão, por outro, atraía fortes contingentes
populacionais formados de pessoas analfabetas e despreparadas
para o trabalho urbano, resultantes do fenômeno das
migrações internas e do êxodo rural,
criando-se todo um processo de marginalização,
com o surgimento de favelas, aumento do desemprego, da marginalidade,
da mendicância .Alguns analistas da época diziam:
"Feira não cresce, incha". As pesquisas
feitas para subsidiar o Plano Local Integrado revelavam
que do total de chefes de famílias entrevistados,
apenas 36,94% haviam nascido no Município, enquanto
63,06% nasceram em outras regiões da Bahia e do Brasil.
Afirma ainda o Plano Local Integrado que a maior carência
é do controle da migração interna,
indicando a necessidade de uma política destinada
a orientar e encaminhar os migrantes para a participação
adequada no mercado de trabalho (Plano Local Integrado Vol
1, pág 76).
A cidade
denominada por Ruy Barbosa de "Princesa do Sertão"
era também conhecida como a cidade dos mendigos.
Na década de 60, entendia-se que o problema social
mais grave que preocupava a Igreja, a maçonaria,
os clubes de serviço, os governantes e os mais diversos
segmentos sociais era, incontestavelmente, a mendicância.
A Igreja Presbiteriana local chegou a criar uma Associação,
Sociedade Evangélica Feirense de Assistência
ao Mendigo, SEFAM e adquirir uma área de terra, (depois
doada ao Serviço de Integração de Migrantes,
SIM), para instalar um centro de recuperação
de mendigos. O plano da Igreja não nos entusiasmou
por dois motivos: o problema era demasiadamente amplo e
complexo para ser enfrentado por uma única comunidade
e a estratégia de recolher os mendigos da cidade
e colocá-los num albergue não nos parecia
adequada, muito menos eficaz.
Mas
valeu a idéia, a iniciativa. Partindo da preocupação
existente, elaboramos um projeto novo de trabalhar a inserção
do mendigo na sociedade mediante a educação
para o trabalho, envolvendo toda a comunidade de Feira no
processo. Para tanto, precisávamos de uma Entidade
abrangente, autônoma do poder público e das
organizações religiosas e sociais da cidade
que, contando com o apoio de todos, pudesse promover o homem-mendigo.
Apresentamos o plano ao Monsenhor Renato de Andrade Galvão
e de pronto deu o seu apoio. Juntos apresentamos o Projeto
ao Prefeito do Município, na época João
Durval Carneiro, que se revelou empolgado, comprometendo-se
em apoiá-lo no que fosse necessário. Assim
foi criada a Associação Feirense de Assistência
Social, AFAS, que em sete anos erradicou a mendicância
na cidade de Feira de Santana, ao menos até o final
da década de 70. Na primeira Diretoria fui o presidente
e Renato Galvão o Vice. Na segunda Diretoria, assumi
o cargo de Diretor Executivo e Galvão foi eleito
para ocupar a presidência. Outros líderes religiosos
foram envolvidos, desenvolvendo-se, desta forma, a primeira
experiência de ecumenismo em favor dos mais excluídos
da sociedade. Destaca-se que a participação
do Monsenhor Renato Galvão foi fundamental para que
o projeto da AFAS se viabilizasse.
A contribuição
de Monsenhor Renato Galvão no campo social não
parou aí. Era um pastor de profunda sensibilidade
humana. Vinha de uma experiência de trabalho de mais
de 20 anos com os índios Cariri de Mirandela, Ribeira
do Pombal e sertão de Canudos. Ainda em Cícero
Dantas fundou o Instituto Bom Conselho, na Paróquia
Senhor dos Passos, criou a Obra Promocional de Santana,
na presidência do Rotary Club de Feira de Santana
desenvolveu ações humanitárias e muito
influiu nas ações sociais da Irmandade da
Santa Casa de Misericórdia.
Portanto,
quando se entendeu que o problema social maior de Feira
de Santana não era a mendicância, mas a migração
e havia a necessidade de se implantar um Centro de Capacitação
de Migrantes na cidade, criando-se, para tanto, o SIM, nos
moldes da AFAS, lá estava de novo Monsenhor Renato
Galvão emprestando o seu prestígio e seu decidido
apoio. Enquanto eu exercia a diretoria executiva ele ocupava
a presidência. E isso aconteceu em vários mandatos,
com funcionamento pleno de 1968 a 1985. Constituiu-se no
único Centro de Capacitação de Migrantes
do País. No período, mais de vinte e cinco
mil migrantes foram atendidos, alfabetizados, documentados,
capacitados profissionalmente e encaminhados ao mercado
de trabalho. Construído e mantido com recursos externos,
oriundos das Igrejas Evangélicas e Ecumênicas
da Alemanha, Canadá, Holanda, Inglaterra e Estados
Unidos, para não onerar a Prefeitura, nem o Estado
Brasileiro. O trabalho do SIM projetou-se no Exterior, no
País e na cidade de Feira de Santana. Tamanha foi
sua importância que deu nome ao próprio Bairro
onde se localiza a sua sede. Esse Projeto também
não teria se viabilizado se não tivesse contado
com a participação e colaboração
efetiva do Monsenhor.
Atuamos
juntos, ainda, na Fundação Cultural, no Instituto
Histórico e Geográfico, na Academia de Letras
de Feira de Santana, mantendo sempre intacta nossa identidade,
nossas posições diferenciadas, porém
respeitosas, leais, fraternas, solidárias, convergentes
na maioria das vezes.
A Feira
de Santana sempre coerente com suas tradições
de cidade aberta e acolhedora prestou-lhe significativas
homenagens. Aqui foi elevado à condição
de Monsenhor, Cura da Catedral Diocesana, Vice-Reitor da
Universidade, nome de praça, de Escola, da Biblioteca
setorial de estudos regionais, cidadão feirense e
de outras cidades da região, título de amigo
do 35º Batalhão de Infantaria, amigo dos ex-combatentes,
do Movimento de Organização Comunitária
- MOC, da Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais - APAE, entre outros. Faltava-lhe, no entanto,
a homenagem que reforçaria a sua imortalidade: a
de patrono da cadeira n 11 da Academia de Educação
de Feira de Santana. Que pela graça de Deus e das
pessoas de boa vontade tenho a honra de ocupá-la.
Monsenhor
Renato Galvão certamente não foi um líder
de posições radicais, para muitos apenas um
intelectual moderado, mas abriu portas para a realização
de um ministério fora dos padrões convencionais,
comprometido com o Reino de Deus, com projetos de humanização
e com a transformação da sociedade. Inegavelmente,
criou espaços para a educação, para
o diálogo e realização de ações
ecumênicas mais radicais e relevantes já operacionalizadas
em Feira de Santana e no Nordeste Brasileiro. Tivemos em
Monsenhor Renato de Andrade Galvão um sacerdote abnegado,
de visão ampla do Reino de Deus e do mundo dos homens,
um amigo de Feira de Santana, de bom coração
e comprometido com o ideal do bem e com as causas da educação
e do desenvolvimento humano e social. Um cristão
que fez por merecer as honrarias de Patrono da Academia
de Educação de Feira de Santana.